Geral
Ministério da Saúde não autoriza continuidade de pesquisa com CBD para tratamento de usuários de crack

Ministério da Saúde não autoriza continuidade de pesquisa com CBD para tratamento de usuários de crack

Relato da professora e pesquisadora Andréa Galassi (Terapeuta Ocupacional pela PUC-Campinas, Mestre e Doutora pela Facul..

Piti Hauer - 24 de janeiro de 2021

Relato da professora e pesquisadora Andréa Galassi (Terapeuta Ocupacional pela PUC-Campinas, Mestre e Doutora pela Faculdade de Medicina da USP, pós-doutora pelo Centro em Dependência Química e Saúde Mental da Universidade de Toronto, Professora UNB) sobre sua pesquisa com canabidiol para tratamento de usuários de crack.

 

Na semana em que o país parou para ouvir e celebrar a ciência, mesmo imerso na água turva negacionista que nos afoga diariamente, junto os cacos para contar o episódio de quando a ciência não resistiu, e sucumbiu aos desmandos de um governo incapaz e ignóbil.

 

A história que tenho pra contar tem os mesmos atores, cenário e enredo da vacina, a diferença é que neste caso o obscurantismo prevaleceu em detrimento do progresso da ciência. Pois bem, a fase II do estudo que coordeno com dependentes de crack tratados com canabidiol deveria iniciar no segundo semestre deste ano, após termos cumprido a fase pré clínica, com a publicação do artigo Evaluation of the potential use of cannabidiol in the treatment of cocaine use disorder: A systematic review (https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0091305720300307), e a fase I, com o financiamento da FAPDF, que finalizará neste primeiro semestre. O recurso para tal viria de uma emenda parlamentar da deputada federal Érika Kokay, obtida com o apoio do deputado distrital Fábio Felix, e todas as exigências impostas pela Anvisa – que não são poucas, porém necessárias – havíamos cumprido: tínhamos nova autorização para importar cananbidiol, além da já obtida para a fase I, autorização de guarda da substância e para realizar o estudo.

 

A articulação para viabilizar a execução desta emenda junto ao Ministério da Saúde (MS) começou em fevereiro de 2019 (para quem desconhece o trâmite, o recurso destinado por um parlamentar para algum projeto deve ser apreciado e aprovado pelo Executivo local; no meu caso, o recurso era federal, a UnB é federal e, portanto, o Executivo local correspondente é o Ministério da Saúde). Fiz reunião presencial com assessores da Área Técnica de Saúde Mental e com o Departamento de Ciência e Tecnologia, uma vez que o projeto trata de uma ação de saúde mental com inovação tecnológica (um novo medicamento). A reunião foi um sucesso e todas as recomendações dadas foram incorporadas ao projeto.

 

O drama se inicia após a inserção, em março de 2019, do projeto no sistema do MS. De lá até o antepenúltimo dia do ano, dá se início ao processo que denomino o mais angustiante, sofrido e odioso que vivi ao longo da minha trajetória profissional: foram ao todo 12 diligências emitidas pela área técnica do MS, incomum se tratando de projetos fruto de emenda parlamentar e com articulação prévia realizada, e a cada resposta minha para cada diligência, semanas se passavam até que viesse a resposta, com nova diligência emitida e com questionamentos que não se referiam à resposta que eu havia dado. A cada nova diligência que chegava se desenhava claramente o objetivo daquilo tudo: fatiar “dúvidas” sobre o projeto e demorar para apreciar minhas repostas era o modo mais legítimo para, deliberadamente, não aprovar um estudo que conflita com a orientação ideológica do pior governo que esta República já teve desde a sua redemocratização.

 

Para ainda contar com o benefício da dúvida e manter a crença que o órgão máximo da saúde no país zela pelo nome que carrega, fiz uma dezena de ligações, enviei dezenas de mensagens de WhatsApp e e-mails a assessores/as, coordenadores/as e diretores/as do MS, me colocando à disposição para detalhar e explicar o que ainda gerava dúvidas e empacava a aprovação, mesmo se tratando de um estudo que já havia sido aprovado em sua fase I pela principal agência de fomento à pesquisa no Brasil, o CNPq, além da aprovação por dois comitês de ética.

 

Nada disso foi suficiente, novas diligências chegavam e o tempo ia passando. O que me restava era delegar o caso à Justiça antes que o ano acabasse e junto dele o recurso que asseguraria a continuidade da pesquisa. Foi quando recorri ao Rodrigo Mesquita no início de novembro que, de pronto, pegou o caso e fez o que deveria ser feito, entrou com um mandado de segurança argumentando que a maneira como o MS estava tratando o projeto obstruía e violava o meu direito como pesquisadora, além de ferir a execução de uma emenda parlamentar de caráter impositivo. A resposta veio e junto dela mais um item para o pacote frustração: a impetrante neste caso deveria ser a UnB, que é a instituição recebedora do recurso. Recorremos com o argumento de que a universidade é onde desenvolvemos nossas pesquisas e a que nos dá condições para tal, mas o pleiteante por recursos e a definição do que pesquisar fica a cargo do professor, numa representação legítima do conceito liberdade de cátedra. Em vão, fomos vencidos também na segunda instância.

 

No dia 28/12/2020 a história se encerra, aquela típica novela, filme e livro que desde o início você já saca quem morre no final, mas insiste em seguir acompanhando com o desejo de ser surpreendido pelo efeito reviravolta que os melhores roteiristas e diretores nos presenteiam. Mas nada disso aconteceu por aqui; roteirista e diretor são selecionados a partir de suas incapacidades, para não destoar do dirigente máximo do show de horrores. Recebo, então, neste dia a REPROVAÇÃO para executar a pesquisa, com argumentos infundados e inexistentes no projeto. Ou seja, o recurso destinado por uma parlamentar não irá financiar coisa alguma, não haverá projeto, não haverá nada, ele simplesmente se perdeu. E se o corte de recursos para a pesquisa feito pelo governo federal não era suficiente, ele agora atua para impedir a execução do orçamento de direito do legislativo e na área que é de sua responsabilidade incidir. Deu para entender que projeto de país é esse que querem para nós?

 

Não queiram saber o que passou e o que ainda passa aqui dentro. A certeza que tenho é que eu caio, mas não enterro; vou demorar um pouco para retomar o fôlego e prosseguir, mas jajá eu volto. Vou junto dos meus para recuperar a paz e diminuir o desencanto. Mas uma coisa certa, a tolerância com aqueles que compactuam com esse atraso, com essa coisa que não tem jeito de nominar, ficou em 2020. Agora eu passo por cima.

Compartilhe