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Mulheres e dependência química: uma chamada para ações em Saúde Pública que considerem o gênero

Mulheres e dependência química: uma chamada para ações em Saúde Pública que considerem o gênero

 Por Alessandra DiehlPisiquiatra, especialista em dependência química, mestre e doutora pela UNIFESP. Vice p..

Piti Hauer - sexta-feira, 18 de junho de 2021 - 08:07

 

Por Alessandra Diehl

Pisiquiatra, especialista em dependência química, mestre e doutora pela UNIFESP. Vice presidente da Associação Brasileira de Álcool e outras drogas (ABEAD)

 

Por muitos anos, a pesquisa e a prática clínica sobre a dependência química e comportamental concentraram-se quase exclusivamente nos homens. No entanto, a consciência científica das diferenças de sexo e gênero sobre os transtornos por uso de substâncias (TUS) tem crescido enormemente entre os profissionais de saúde nas últimas décadas. Existem algumas razões que justificam este interesse aumentado.

 

O primeiro deles refere-se ao padrão epidemiológico que vem sinalizando um aumento do consumo de álcool e outras drogas entre as mulheres em vários lugares ao redor do mundo. No Brasil, por exemplo, 17% das mulheres adultas afirmaram ter bebido uma vez ou mais por semana em 2019. O índice é 4,1 pontos percentuais maior do que era em 2013 (12,9%) segundo dados do programa nacional de saúde (PNS) de 2019 (Pesquisa Nacional de Saúde, 2019). Os Levantamentos Nacionais de Álcool e outras Drogas (LENAD II e II de 2006 e 2012) já sinalizavam um aumento mais significativo de consumo de álcool entre as mulheres, que foi de 29% em 2006 para 39% em 2012. Nestes mesmos levantamentos, procurou-se identificar o beber em “binge” que é considerado um indicador de beber nocivo, onde o indivíduo ingere grandes quantidades de álcool (4 unidades de álcool para mulheres e 5 unidades para homens) em um período curto de tempo (2 horas). Observa-se que entre 2006 e 2012 houve um aumento significativo desta forma de consumo com um aumento maior observado no sexo feminino, de 36% para 49% (LENAD, 2014).

 

Além disto, milhões de meninas e mulheres foram atraídas para o tabagismo por uma indústria tabaqueira que tem visado clara e sistematicamente mulheres de todas as idades e circunstâncias de vida. As estratégias de marketing do tabaco vinculam habilmente o uso do cigarro aos valores femininos típicos. Biologicamente falando, as mulheres são especialmente vulneráveis à legião de problemas de saúde decorrentes do uso do tabaco. Assim como o álcool, fumar é um risco crítico para as mulheres em idade reprodutiva, especialmente quando estão grávidas (Reichert et al., 2004). Na maioria dos países, o uso de benzodiazepínicos (BZP) e z- compostos aumenta com a idade e é mais frequente em mulheres do que em homens, o que tem gerado muita preocupação devido aos riscos associados ao uso de benzodiazepínicos a longo prazo. No Brasil, a prevalência do uso de BZP ao longo da vida e em 12 meses foi de 9,8 e 6,1%, respectivamente. A prevalência do uso de BZP no Brasil vem sendo considerada alta em comparação com outros países (Madruga et al., 2019).

 

A segunda justificativa diz respeito ao fato de que o gênero parece ser ainda incorporado de forma polêmica no cotidiano dos serviços; mesmo que os discursos indiquem padrões diferenciados de uso de substâncias como o crack, por exemplo, entre homens e mulheres, assim como o acesso e uso de serviços psicossociais e na forma de obtenção das substâncias uma vez que as mulheres continuam a ser consideradas devido à sua “capacidade reprodutiva”. Mesmo nos serviços da rede de atenção à saúde, as usuárias de crack são estigmatizadas por serem mulheres que consomem crack e moram nas ruas. Isto de certa forma ainda indica que a ideologia da mulher-mãe prevalece na organização da rede de atendimento e o preconceito ainda é brutal (Santos et al., 2020). Diante desta constatação, surge a necessidade de criar e ampliar espaços de trocas e cuidados com mais acolhimento e menos preconceito.

 

Além dos serviços de saúde formais da chamada rede de atenção psicossocial (RAPS) em álcool e outras drogas, os movimentos sociais e grupos de mútua ajuda com um olhar para questões e pautas feministas têm surgido neste contexto. Em 2020, por exemplo foi iniciado um perfil no Instagram para falar de Alcoolismo Feminino. As idealizadoras entenderam como missão a atração de mulheres em sofrimento pelo uso nocivo do álcool e o incentivo na perda da vergonha e do medo de procurar ajuda. Vivências e sentimentos em comum são evidentes e, à medida em que se identificavam umas com as outras, tornaram-se parte de um coletivo e o grupo identitário ganha forma e força. Na verdade, consolida-se um grupo virtual de conversas, onde confiança e ajuda são imperativos com 60 voluntárias composta em sua maioria por alcoolistas em recuperação de longo prazo ou recém-iniciadas (e dedicadas) no processo.

 

Há que se considerar também, sem dúvida o binômio mãe-filho que é extremamente importante a se pensar nesta lógica de cuidados, embora não o único. A exposição pré-natal ao álcool causa anomalias craniofaciais, retardo de crescimento, anormalidades neurológicas, deficiência cognitiva e defeitos de nascença , uma condição conhecida como síndrome do espectro alcoólico fetal conhecida pela sigla SAF, a qual segue sendo subdiagnosticada. A SAF tem algo impacto na saúde pública uma vez que as anormalidades modificam as trajetórias de desenvolvimento das crianças e estão associadas a déficits na cognição, função executiva, memória, visão, audição, habilidades motoras, comportamento e adaptação social. A prevalência global de SAF é de 0,77%, com uma prevalência mais alta de 2 a 5% na Europa e na América do Norte. O diagnóstico desta condição continua sendo um desafio devido à baixa confiabilidade das histórias maternas de consumo autorrelatadas, à ausência de biomarcadores sensíveis e à infrequência de características faciais dismórficas diagnósticas entre indivíduos com SAF (Wozniak, Riley , Charness, 2019).

 

Soma-se também que a temática da dependência química em mulheres tem uma interface importante com outras áreas do saber, como a pediatria, a ginecologia, a psicologia e o serviço social dado as especificidades e as complexidades que envolvem a linha de cuidados deste público. Muitos profissionais destas áreas atendem mulheres com problemas de consumo de álcool e outras drogas, mas sentem imensa dificuldade para manejar as diversas questões envolvidas neste cenário. As dificuldades avolumam-se devido ao baixo treinamento durante a graduação. Todos estes argumentos parecem justificar a importância de se entender o estigma social e as diferenças do tratamento entre homens e mulheres dependentes de substâncias. Trata-se de uma chamada para ações bem planejadas no contexto de saúde pública que considerem, sobretudo, as questões relativas ao gênero.

 

 

 

Fontes: Clarice S Madruga, Thales L Paim, Hamer N Palhares, Andre C Miguel , Luciana T S Massaro, Raul Caetano, Ronaldo R Laranjeira. Prevalence of and pathways to benzodiazepine use in Brazil: the role of depression, sleep, and sedentary lifestyle. Braz J Psychiatry . Jan-Feb 2019;41(1):44-50. doi: 10.1590/1516-4446-2018-0088. Epub 2018 Oct 11.

Gilney Costa Santos, Patricia Constantino, Miriam Schenker, Luzania Barreto Rodrigues. Women’s crack consumption: an analysis on the meanings constructed by the street clinics’ consulting professionals of the city of Rio de Janeiro, Brazil. Cien Saude Colet . 2020 Oct;25(10):3795-3808. doi: 10.1590/1413-812320202510.05842019. Epub 2019 Mar 18.

II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (LENAD) –2012. Ronaldo Laranjeira (Supervisão) , São Paulo: Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Políticas Públicas de Álcool e Outras Drogas (INPAD), UNIFESP. 2014

Jeffrey R Wozniak, Edward P Riley , Michael E Charness. Clinical presentation, diagnosis, and management of fetal alcohol spectrum disorder . Lancet Neurol . 2019 Aug;18(8):760-770. doi: 10.1016/S1474-4422(19)30150-4. Epub 2019 May 31.

Pesquisa Nacional de Saúde – PNS. https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/saude/9160-pesquisa-nacional-de-saude.html?=&t=downloads

Virginia Cullen Reichert, Vicki Seltzer, Linda S Efferen, Nina Kohn. Women and tobacco dependence. Med Clin North Am . 2004 Nov;88(6):1467-81, x. doi: 10.1016/j.mcna.2004.07.009.

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