Circulação em locais de trabalho no Brasil segue maior que no exterior, mesmo com descontrole da pandemia

O Brasil chegou à marca de 300 mil mortos pela Covid-19 ainda com aceleração de novos casos e com grande desgaste de uma..

O Brasil chegou à marca de 300 mil mortos pela Covid-19 ainda com aceleração de novos casos e com grande desgaste de uma das principais armas para reduzir a velocidade do contágio do vírus, a circulação em locais de trabalho.

A reportagem analisou a presença nos espaços laborais em 81 cidades ao redor do mundo, sendo 27 brasileiras (as capitais), considerando o acompanhamento do Google de aparelhos móveis.

A observação geral é que o movimento nesses espaços no Brasil caiu menos do que nos outros locais, ainda que os brasileiros já tenham sofrido duas grandes ondas de mortes e, neste momento, o país seja o epicentro da pandemia.

A redução média na presença do trabalho no Brasil foi a metade da observada nas principais cidades europeias (como Paris, Lisboa, Madri e Londres), ao longo da pandemia. Essas regiões também foram fortemente afetadas pela doença.

Na América Latina, Lima, Buenos Aires, Santiago, Bogotá, Guayaquil, Cidade do México, Porto Príncipe e Santo Domingo diminuíram o tempo gasto no trabalho mais do que todas as capitais brasileiras.

Na região, apenas Assunção e Montevidéu tiveram redução na movimentação laboral semelhante à brasileira. As capitais do Paraguai e Uruguai, porém, vivem uma pandemia menos dramática –elas têm taxa de infecção cerca de 50% menor que a brasileira.

No começo da pandemia, por volta de março e abril do ano passado, a queda da circulação nos locais de trabalho no Brasil foi semelhante ao apresentado no restante do mundo.

Ao longo dos meses, porém, os brasileiros foram gradativamente retornando a esses locais, segundo o monitoramento do Google, mesmo que o volume de mortes fosse aumentando.

No mês passado, quando já havia nova explosão de casos no Brasil e sistemas hospitalares em colapso, as capitais brasileiras estavam com uma redução média de apenas 8,8% em relação ao período pré-pandemia. Nas cidades sul-americanas analisadas, a redução era de 27% e nas europeias, de 34% (ou seja, quase o quádruplo de redução do que no Brasil).

Em Manaus, a capital brasileira com maior redução em locais de trabalho no mês passado, o movimento era 18% menor do que antes da pandemia. Em Lima, essa diminuição estava em 44% no mesmo mês, enquanto Lisboa tinha 58% de redução (ambas com pandemia mais controlada que no Amazonas).

A análise da reportagem com base nos dados do Google mostra ainda que o padrão de circulação no Brasil nos demais locais avaliados (como parques, comércio e transporte público) não difere tanto dos demais países.

“As políticas implementadas no Brasil são insuficientes para dar condições para que as pessoas fiquem em casa”, afirmou a professora de ciência política da USP Lorena Barberia, da Rede de Pesquisa Solidária, que reúne instituições públicas e privadas.

“Mesmo o auxílio emergencial, quando está em vigor, não traz junto uma comunicação de que é para ficar em casa. A pessoa recebe o dinheiro e pode sair para gastar. Em muitos casos, teve de se aglomerar para pegar o benefício”, diz ela, em referência às filas nos bancos, que ocorreram devido aos problemas no aplicativo para cadastramento.

Barberia diz ainda que as medidas de restrição no Brasil são apenas moderadas, comparadas com as de outros países também atingidos fortemente pela pandemia. “Aqui tem se falado que estamos em ‘lockdown’. Não tem paralelo com o que ocorre no exterior. Lá, a pessoa não pode sair de casa. E, em média, é uma medida que dura 38 dias.”

Anna Petherick, pesquisadora da Escola de Governo Blavatnik, da Universidade Oxford, que monitora as respostas governamentais no mundo, afirma que “o apoio econômico às famílias tem flutuado muito no Brasil, muito mais do que outros países também com grandes questões sobre capacidade financeira”.

Ela cita a África do Sul como exemplo de local com apoio financeiro mais alto e consistente do que o brasileiro. No Brasil, o auxílio emergencial do governo federal acabou em dezembro. Uma nova rodada, com valor mais baixo, será pago a partir de abril.

Em relação às medidas governamentais como um todo, Petherick afirma que o Brasil teve no início uma resposta inicial alinhada com a do restante do mundo. Mas, depois, as medidas passaram a ser adotadas tardiamente. E com muitas variações entre os estados, diferentemente do Canadá, por exemplo, em que as ações têm grande coordenação nacional.

Especificamente sobre a movimentação nos locais de trabalho, a pesquisadora vê algumas possibilidades que podem ajudar a explicar por que a circulação tende a ser mais alta no Brasil do que em outros lugares: 1) regras menos rígidas; 2) lista maior do que é considerado trabalho essencial; 3) maior descumprimento das regras no país do que em outros lugares. Possivelmente, afirma ela, esses fatores podem estar agindo ao mesmo tempo.

Barberia, a pesquisadora da USP, levanta também a dificuldade de os pesquisadores terem acesso a como o monitoramento do Google é feito e, consequentemente, a formarem uma compreensão maior dos resultados.

A professora da USP afirma que vem acrescentado outras formas de pesquisa para ter uma leitura melhor sobre a evolução da mobilidade das pessoas durante a pandemia.

No caso dos espaços de trabalho, ela afirma que a grande movimentação captada pelo Google está alinhada com pesquisas de opinião. Ela cita uma apresentada neste mês pela Febraban (federação dos bancos), com amostra de 3.000 entrevistados no começo de março, como sendo representativa para o país.

Naquele momento, em que já havia explosão de internações em UTIs e crescimento rápido no número de novas mortes pela Covid, 59% dos entrevistados afirmaram que estavam saindo para trabalhar sempre ou algumas vezes. Dos pesquisados, 33% estavam indo a lojas e shoppings.

“Se a pessoa sai para trabalhar, se sente mais à vontade também para visitar um amigo, ir comer fora. É um fator importante para a circulação”, afirmou a pesquisadora.