(Foto: divulgação)

O mel virou gourmet, mas as abelhas mandam um telegram de SOS

O mel não é a estrela de nenhum prato. Mas, da mesma forma que os temperos, condimentos e especiarias, como o sal, a pim..

O mel não é a estrela de nenhum prato. Mas, da mesma forma que os temperos, condimentos e especiarias, como o sal, a pimenta, azeites e ervas, tem presença marcante na composição e harmonia de grandes receitas, doces e salgadas. Elevado à condição de iguaria gourmet e garantidor de likes no Instagram e outras redes sociais, hoje, o mel de abelhas está criando uma nova página na gastronomia nacional e desafiando mais uma vez a criatividade dos chefs.

Por suas características próprias, o mel possibilita infindáveis combinações na culinária. Até recentemente, isso acontecia só nos doces. Mas, agora, invadiu os salgados. Suas floradas, silvestres, e das culturas extensivas como de laranjeiras, macieiras e eucaliptos, as mais conhecidas, dão aos chefes muito espaço para suas criações. In natura ou cristalizado, o mel, com suas diversas texturas e tonalidades, pode ter seus sabores potencializados com misturas de várias colmeias. E também servir de elemento que suaviza ou realça pratos condimentados ou de muitas combinações de sabores. Estes são apenas alguns exemplos de sua utilidade.

O principal foco dos restaurantes são as abelhas nativas. Mais de trezentas espécies dessas melíponas (abelhas sem ferrão) povoam diversos biomas do território brasileiro. O mel das nativas é mais adequado nas harmonizações dos pratos salgados. Isto por ser menos doce do que o mel tradicional produzido pelas abelhas africanas com ferrão (Apis mellifera). E também por ter acidez elevada e sabor mais complexo.

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Mel no carpaccio de peixe ou com finas fatias de peito de pato

A alta gastronomia tem apresentado combinações surpreendentes. A conhecida chef paranaense Manu (Manoella) Buffara, do restaurante Manu, resume bem o que pensam os cozinheiros profissionais da atualidade sobre o uso do mel, como disse a uma recente entrevista à revista Forbes: “O mel de abelhas jataí tem uma característica mais ácida, uma textura mais fluída, cor bem dourada; é muito saboroso e aromático. Já usamos mel de jataí em muitos pratos do Manu. Atualmente, usamos na manteiga que fazemos no restaurante e para marinar peixes crus. Esse mel é suave e muito versátil e pode ser usado em diferentes receitas, como tempero de saladas ou carpaccio de peixe”.

Pensem em finas fatias de peito de pato ao forno, com abobrinha, pinoli, laranja e mel silvestre. Imaginem que a flor de abobrinha com bottarga (elaborada com ovas de tainha, é chamada de caviar brasileiro), junto com flocos de camarão seco e ovas de peixe, recebe um toque de mel de jataí, na culinária japonesa. Abacaxi com queijo fresco e mel, com um toque de flor de sal. Pêssego assado com mel de mandaçaia. Tomate orgânico defumado, ricota caseira e mel. O sashimi de polvo com um fio de mel de jataí. Como se fossem “chefes” de laboratórios de alquimia gastronômica, os cozinheiros vão abrindo mais uma fronteira da culinária.

Mas o mundo do mel não se resume a isso. A base vem de longe. Na cozinha tradicional, o mel das duas espécies (com ferrão ou sem) também tem sido usado cada vez mais com frequência tanto por chefs como cozinheiros amadores e donas de casa, no seu dia-a-dia. As variações na cozinha já estão muito além das bolachas, pães e doces. Temos visto cada vez mais receitas tipo salmão e brócolis ao vinho e mel; frango com shoyu e mel; fraldinha assada com mostarda e mel; lombo ao maracujá e mel; molho de mostarda e mel. Nessa linha, na qualidade de cozinheiro amador, me arrisquei a fazer uma receita para ilustrar essa matéria: costelinha de porco ao forno com crosta de farinha de milho grossa e mel (veja a receita no final do texto).

Abelhas e produção de mel são cada vez mais confinadas aos grotões

Quem produz este néctar da natureza, no entanto, vai de mal a pior.

As abelhas já mandaram telégrafo, telex, cabograma, teletipo, telegrama, fax e agora estão mandando telegram de SOS (socorro), para ver se recebem ajuda mais efetiva e conseguem sobreviver o que resta das espécies, no planeta. Mas não está adiantando. Com o avanço das cidades, o desmatamento e o uso indiscriminado de agrotóxicos, as abelhas estão cada vez mais confinadas em pequenos nichos de matas e bosques para produzir o precioso mel, quando deveriam estar num lugar de honra na agricultura, já que são elos fundamentais no processo produtivo.

Parodiando o nosso grande escritor Machado de Assis (1839-1908), que disse em seu célebre romance “Quincas Borba”: “Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas”.  Às abelhas, restaram as migalhas dos grotões.

A ciência, a técnica e a arte de criar abelhas para extrair-lhes mel, a apicultura, é que vêm garantindo que as abelhas não tenham sido praticamente extintas. Usado como alimento desde a pré-história da humanidade, o mel por vários séculos foi retirado dos enxames de forma predatória, causando sérios danos ao meio ambiente, sem o homem ter plena consciência do que fazia.

Com o passar do tempo, contudo, as gerações foram aprendendo a proteger seus enxames, instalá-los em colmeias e manejá-los de forma racional e sistemática, de forma que pudessem tirar proveito próprio deste milagre da natureza, sem causar prejuízo às abelhas e às produções futuras. De maneira simples, é possível dizer que, assim, nasceu a apicultura. Além do mel propriamente dito, os produtores, com a criação racional de abelhas, vêm explorando outros produtos importantes oriundos das colmeias, como própolis, geleia real, cera, pólen agrícola, sem contar a comercialização de rainhas, enxames e crias.

No Brasil, 70% do mel extraído vêm das abelhas africanas. Os outros 30% das nativas. Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em 2020 a produção nacional atingiu 51,5 mil toneladas, 12,5% a mais do que 2019. O valor de produção também aumentou, para R$ 621,5 milhões. O Censo Agropecuário de 2017 apontava que existiam 101 mil apicultores no país, que produziam, por colméia, 19,80 quilos de mel/ano (na Argentina, esse índice é de 35 kg). Os especialistas dizem que o Brasil tem um grande potencial de crescimento, caso os apicultores superem as dificuldades de manejo e aumentem a produtividade.

ao e processamento de mel na Associaçã Paranaense de Apicultura” width=”900″ height=”604″ /> Processamento e embalagem do mel tradicional, na sede da APA (Associação Paranaense de Apicultores), em Curitiba. Foto: Diego Singh

Alertas da ONU precisam virar políticas de preservação

De qualquer quer forma, é mais do que consenso que a situação continua alarmante, dizem os especialistas. Porque na natureza e na agricultura, as abelhas, principais agentes polinizadores, propagam continuamente a reprodução de flores, culturas, frutos e sementes, estão desempenhando cada vez menos o seu papel. À medida em prossegue o criminoso extermínio de matas e florestas, as abelhas perdem o seu habitat natural. Assim, os danos cada vez maiores ao meio ambiente representam, em síntese, uma sentença de morte para as abelhas.

Esses dados podem ser conhecidos, mas é importante recordá-los neste contexto: a ONU (Nações Unidas) vem alertando em seus relatórios anuais que o uso excessivo de agrotóxicos e o desmatamento estão contribuindo decisivamente para o desaparecimento das abelhas. Sem elas, toda a atividade agrícola do mundo corre perigo, porque as abelhas são responsáveis pela polinização de 80% das plantas no mundo. Curiosidade assombrosa que dos pesquisadores: uma só abelha pode percorrer até 12 quilômetros em busca de alimento e água, sendo que cada inseto visita dez flores por minuto e toca em cerca de 240 mil flores num dia.

Segue a receita do jornalista:

Costelinha de porco com crosta de farinha de milho grossa e mel

(2 a 3 pessoas)

Ingredientes

800 g de costelinha de porco

200 g de fubá grosso

200 g mel

100 ml de vinho branco

Azeite de oliva

Sal, pimenta-do-reino, ervas e especiarias a gosto (usei aqui um mix caseiro com 10 ervas, pimentas, cebola e alho desidratados, “puxadas” no açafrão)

Preparo

Lave a costelinha com água e vinagre. Tempere com o sal, a pimenta, as ervas, as especiarias e o vinho branco. Deixe marinar uma hora na geladeira. Espalhe o azeite sobre os temperos na parte da carne (já que vai ser assada com os ossos para baixo). Por fim, com uma colher, vá adicionando a farinha aos poucos para cobrir bem a superfície da carne. Aqueça o forno e asse a 180 graus, durante 50 minutos. Depois, adicione uma boa camada de mel misturada com um pouco dos temperos já usados sobre a carne por mais 20 minutos, a 160 graus. O mel deve dar um toque suave ao sabor da carne temperada.

Pode assar na mesma forma batatas miúdas com a casca, bem regadas no azeite de oliva e um toque de sal.