Torneira aberta das emendas corrói discurso antissistema de Bolsonaro

Bandeira eleitoral de Jair Bolsonaro (sem partido), o figurino de um presidente antissistema e contrário à chamada "velh..

Bandeira eleitoral de Jair Bolsonaro (sem partido), o figurino de um presidente antissistema e contrário à chamada “velha política” vem se chocando frontalmente com a prática adotada por ele na relação com o Congresso Nacional.

A partir principalmente do primeiro semestre de 2020, quando firmou acordo com o centrão para escapar da ameaça de um processo de impeachment, Bolsonaro distribuiu cargos federais e um volume recorde de emendas parlamentares aos partidos do grupo que outrora chamava de “a alta nata de tudo o que não presta no Brasil”.

Conforme o jornal Folha de S.Paulo noticiou em março de 2020, a fragilidade política da segunda gestão de Dilma Rousseff (2015-2016) e do governo Michel Temer (2016-2018) e o fracasso de Bolsonaro em montar uma base de apoio concreta em seu primeiro ano de governo levaram o Congresso a atingir um papel de protagonismo poucas vezes visto na história do país, disputando com o Executivo a definição da aplicação do dinheiro federal para investimentos e custeio.

A liberação de verbas de emendas bateu recorde na gestão Bolsonaro, privilegiou correligionários, que direcionaram verbas para obras como pavimentação de vias, construção de adutoras e barragens em seus estados, e foi fundamental, inclusive, para arregimentar o apoio de parlamentares em favor da eleição do seu aliado Arthur Lira (PP-AL) para o comando da Câmara dos Deputados.

No último fim de semana, o jornal O Estado de S. Paulo publicou reportagem relatando detalhes desse modelo de relação entre o governo e o Congresso, o que inclui ofícios enviados por deputados aliados de Bolsonaro ao Ministério do Desenvolvimento Regional, chefiado por Rogério Marinho, pedindo o direcionamento de emendas para obras e a aquisição de tratores nos municípios.

No site do ministério é possível acessar livremente informações e documentos relativos a essas emendas, com o nome do parlamentar, inclusive da oposição (o senador Humberto Costa, do PT-PE, por exemplo), que a apadrinhou, etapas da execução e os valores desembolsados.

As emendas parlamentares, antigo foco de fisiologismo e corrupção na relação Executivo-Legislativo, ganharam mais relevância a partir de 2015, sob a batuta do então presidente da Câmara, Eduardo Cunha (MDB-RJ).

Até então, funcionava o seguinte modelo: cada um dos 513 deputados federais e 81 senadores poderia alocar parte do Orçamento Federal –peça elaborada pelo governo, mas votada e emendada pelo Congresso, dai o nome “emenda parlamentar”– para obras e investimentos em seus redutos eleitorais.

Ocorre que o governo não era obrigado a cumprir essas emendas. Ou seja, executava-as de acordo com o seu interesse político –em geral privilegiando quem lhe era fiel e punindo opositores. Congressistas, por sua vez, condicionavam o apoio à execução de suas emendas. Daí a expressão “toma lá dá cá”.

Em 2015, o Congresso alterou a Constituição e estabeleceu a execução obrigatória das emendas apresentadas individualmente por cada um dos parlamentares, um total de cerca de R$ 10 bilhões, observadas algumas regras.

O grande salto ocorreu em 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro, quando se aprovou o Orçamento para 2020. O Executivo tentou sem sucesso emplacar um modelo de relação com parlamentares baseado na interlocução com frentes temáticas, como a ruralista, e não com partidos.

Foi quando o Congresso tornou obrigatória a execução das emendas de bancadas estaduais –cerca de R$ 6 bilhões–, além das individuais.

Mais importante do que isso, emplacou um valor expressivo para emendas feitas pelo relator-geral do Orçamento, que é o deputado ou o senador que, a cada ano, conduz a análise do Orçamento pelo Congresso.

Câmara e Senado aprovaram um valor de cerca de R$ 30 bilhões para o relator, que repassaria essa verba para ser distribuída por deputados e senadores alinhados.

Após reação da equipe econômica, que temia um estrangulamento do poder de manejo orçamentário do governo, Bolsonaro vetou a medida, mas o Congresso só não derrubou o veto mediante acordo com o Palácio do Planalto que manteve R$ 20 bilhões nas mãos do relator-geral, sob a rubrica orçamentária RP9.

Foi nesse período em que o presidente deixou de atacar o centrão. Antes das emendas de relator, as negociações, como ocorreram na votação da reforma da Previdência, envolviam outra forma de liberação, via recursos extraorçamentários, que não entram no cálculo das emendas de destinação impositiva.

Na discussão do Orçamento de 2021 os parlamentares voltaram a tentar reservar cerca de R$ 30 bilhões para as emendas do relator-geral –valor que, na verdade, é rateado entre vários congressistas a depender dos acordos políticos firmados–, mas o montante ficou em torno de R$ 20 bilhões após vetos de Bolsonaro negociados com a equipe econômica e com líderes do Congresso.

Com isso, as emendas parlamentares autorizadas no governo Bolsonaro tiveram valores mais do que duplicados em sua gestão. Em 2018, as individuais e coletivas representaram cerca de R$ 13 bilhões. Em 2019 (cujo Orçamento foi aprovado em 2018), cerca de R$ 15 bilhões.

Em 2020 e 2021, e já com a novidade das emendas do relator-geral, esses valores saltaram para R$ 38 bilhões e R$ 35 bilhões, respectivamente.

A verba do relator é uma moeda de troca muito mais passível de uso para obtenção do apoio parlamentar –já que as emendas individuais são de execução obrigatória– e sujeitas a ainda menos transparência.

O Planalto nega que haja irregularidades na forma como o dinheiro foi distribuído. Bolsonaro atacou nesta terça-feira (11) as reportagens.

“Eu faço um churrasco aqui , apanho. Inventaram que eu tenho um Orçamento secreto agora. Eu tenho um reservatório de leite condensado ali, 3 milhões de latas escondidas”, ironizou. “É sinal que eles não têm o que fazer. Como é que o Orçamento foi aprovado, discutido meses, agora apareceu R$ 3 bilhões?”

No programa Roda Viva, na noite desta segunda-feira (10), o líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), disse que a indicação de emendas por parlamentares não é novidade e que não há nada de secreto na operação. Para Bezerra, essa questão vai ser esclarecida e ele acha “muito difícil” que se torne “tema de preocupação para o governo federal”.

A oposição na Câmara pediu ao TCU (Tribunal de Contas da União) a suspensão dos pagamentos de emendas parlamentares da modalidade RP9. O subprocurador-geral Lucas Rocha Furtado, do Ministério Público junto ao TCU, também pediu à corte uma investigação sobre o tema.

A oposição protocolou ainda representação no Ministério Público do Distrito Federal contra o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho.

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), afirmou que irá avaliar o caso para adotar “um posicionamento que seja seguro” e “tecnicamente adequado”, dando “uma resposta que faça a defesa do Congresso Nacional em relação a episódios que por vezes não podem ser atribuídos ao Congresso Nacional.”

Em nota, o Ministério do Desenvolvimento Regional diz que o instrumento de emendas do relator foi criado pelo Congresso, e não pelo Executivo. “É do Parlamento a prerrogativa de indicar recursos da chamada emenda de relator-geral (RP9) do Orçamento.”

A pasta afirma ainda que a execução dos recursos é divulgada e atualizada diariamente no portal do ministério e registra que eles também foram liberados para parlamentares da oposição.