Pedro Ribeiro
Foto: Divulgação

Por Aroldo Murá

 

Fábio Campana oi poderoso, mas nunca ganhou dinheiro com seus projetos culturais, a Travessa dos Editores e as revistas Ideias e ETC.

 

Testemunho sem medo de errar que Fabio Campana teve dois grandes amigos em sua vida curitibana, a partir de 1960, quando aqui em Curitiba passou a morar: Jamil Snege e Carlos Alberto Pessoa (Nego Pessoa). Com Pessoa (e Luiz Carlos Zanoni) dividiu uma casa e um amplo relacionamento fraterno em que não faltaram os “emburramentos’ uns contra os outros, as brigas, as disputas, estas muito centradas naqueles dias de solteirice em torno de paixões comuns. A mais forte delas, MGA, uma bela e insinuante morena catarinense que preenchia os sonhos e as disputas de atenções do trio. Hoje, uma senhora internacional e muito bem casada em França. Mas o grande prêmio, a beldade, foi levado temporariamente por Jamil. Ninguém vencia o Turco quando ele colocava corpo e alma num alvo.

Claro que Campana sempre me incluiu na pequena relação de seus amigos próximos, tanto que eu não faltava nos dias em que ele e Denise Camargo, a fiel companheira, abriam as portas para generosos almoços no casarão do Parque Tingui. Tudo acompanhado pelos olhares inteligentes dos adolescentes Isabel e Rubens, os filhos. A verdade é que o relacionamento de Campana, Jamil e Pessoa era o de almas poéticas, por vezes irreverentes, incluindo um mundo em que “passeavam sílfides nuas, em málidas noites”, como, certa vez, definiu-me-o Pessoa tal centro das amplas tertúlias deles, universo da amada.

Reconheço que Pessoa foi preciosista na definição, concessão rara, interessante, mas explicativa daqueles dias. Luiz Carlos Cunha Zanoni, então jornalista de primeiro universo, era o dono da casa. Formavam um grupo, na vanguarda da cidade, antecipando com suas falas e escritos, um universo de mudanças que logo chegaria. Eram um tanto iconoclastas para aqueles dias, numa cidade provinciana (mesmerizada pelas mensagens do padre Emir na televisão) e na qual eles eram mais ou menos vistos como raridades intelectuais.

No começo dos 1960s o grupo não só esquadrinhava Ferlinghetti e Salinger, Roth, Guimarães Rosa, com passagens por Freud, Breuer, Stekel, como era capaz de conseguir se aproximar de Dalton Trevisan e captar o essencial do contista, sabidamente uma barreira de ferro a contatos humanos. Muitas vezes fiquei só sorvendo horas de inteligência, quando Campana, Jamil e Pessoa se enfrentavam na defesa de pontos de vistas divergentes. Nessas “disputatios” Jamil, vivendo uma fase de espiritualidade, tentava explicar visões de seres de outro mundo, isto na casa em que morava, no Rebouças, com a primeira esposa, Luiza. Campana e Pessoa se diziam materialistas.

Mas raramente encontrei gente mais espiritualizada do que eles, do ponto de vista de entenderem uma dimensão transcendental (não obra do acaso), que existe em cada ser humana. Poetas não são materialistas; céticos, pode ser… Religiosos? Há exceções, com o Adélia Prado.

ESCOLHA O ÂNGULO

Rubens Campana, exausto depois de dois dias de viagens e trocas de aviões, vindo de Israel, me telefona às 15h30 min de sábado, 29. Tinha estado, desde manhã, com a mãe, Denise, no Hospital Nossa Senhora das Graças, em conversa com os médicos que assistiam o pai. O quadro era irreversível, disse-me, fato que confirmaria às 19h30, em novo telefonema quando me informou que o “Barba” acabara de morrer.

– O senhor era um dos melhores amigos dele, exclamou Rubens, ainda insone da longa viagem de Tel-Aviv (onde é cônsul) a Curitiba.

No breve e triste contato, fico sabendo que está apaixonado pela Terra Santa, Jerusalém, em particular. É muito fácil, e extremamente difícil, ao mesmo tempo, falar do amigo (Luiz) Fábio Campana, 74. Com ele, quem tivesse boa memória da Curitiba da metade do século 20 em diante, tinha passaporte para juntos executarem deambulações do conhecimento histórico do Paraná. E capacidade também de esgrimir na área do Humanismo era indispensável, pois os saberes de Campana se alimentavam de reflexões que iam muito além de seus conhecimentos enciclopédicos enormes.

Os parceiros teriam de exercitar exercícios de inteligência pelo menos iguais aos dele… Não havia raciocínios binares com ele, quando se tratava de definir gostos, posições políticas atuais, visão de Paraná, imersão na história de seu estado em que, costuma me dizer, “tive a honra de conviver com dois dos homens mais valiosos do Estado, o Jaime Lerner e o Belmiro Valverde Jobim Castor…” Claro que seu panteão de admirações contemplava outros notáveis, como Ney Braga, Wilson Martins, Norton Macedo, Luiz Roberto Soares, Jayme Canet Junior…

Chamo o testemunho do advogado e meu amigo Luiz Fernando Casagrande Pereira para lembrar um encontro para sempre memorável que Campana promoveu no endereço da Travessa dos Editores, há uns 12 anos, tendo como centro Jaime e Belmiro, num jantar soberbamente montado por Márcia Tocafundo.

Fábio tinha uma espécie de reverência aos mais velhos, acho, pois me colocou na mesa principal, ao lado dele e dos dois ícones homenageados. Fotos foram feitas, são inéditas. Nenhuma linha saiu daquele raríssimo ágape (como se diria antigamente). Campana sabia separar o pessoal do fato jornalístico.

O jantar foi nova oportunidade que tive de registrar momentos únicos. Os três prelecionaram sobre os mundos imediato e mediato. Foram da política nacional ao cinema, das rachaduras na vida cultural paranaenses à “cultura ornamental” que os três condenavam de forma uníssona, mas indicavam como parte saliente de um político “doente pelo poder”, que passara pela Prefeitura. Se tivesse gravado o encontro, quantas declarações históricas não teria registrado? Lamento não poder recuperar aquelas falas, particularmente agora quando Lerner e Fábio “resolveram partir”, com quatro dias de diferença, rumo à outra “Mansão”.

AS LIÇÕES DO “PRÍNCIPE

“Nunca o vi recomendar Maquiavel. Mas o notável de Florença foi seu inspirador. Tenho certeza. E dizendo isso tento ancorar minhas explicações sobre a enorme capacidade de sedução e controle do poder que Fábio Campana exerceu na vida paranaense. Dificilmente alguém escapava de seu poder de convencimento. Aníbal Khury não escapou ao imã de Fábio. Dois dos mais conhecidos governantes que Campana serviu, foram Álvaro Dias e Roberto Requião (deste, também na Prefeitura de Curitiba). Teve enorme influência em suas administrações. E saiu também brigado com os dois.

No entanto, a bem da verdade, Fábio, desde a redemocratização do país, andou “costeando” os endereços da Prefeitura de Curitiba, Assembleia Legislativa e Palácio Iguaçu. Os jornais, as rádios, nada lhe era indiferente quando se tratasse de fincar pontes e ser ator privilegiado na vida pública. Importava-lhe sobremaneira fincar suas opiniões, suas análises do mundo ao derredor. Sabia fazer essencial, necessário, gostava de ver sua palavra como a de quem decreta o “Ex-Chatedra”.

Curiosamente, até que, de forma indireta, incentivava naqueles dias o apelido que lhe deram de “Brujo”. Ou, como maldosamente uma figura do terceiro escalão administrativa, “Macedinho”, o apelidou: “El Diablo”. Não foi um mero secretário de Imprensa de dois dos mais importantes governadores que o Paraná teve. Ele fez quase sempre o papel de um “super-secretário”, expondo-se o menos possível como poderoso. Assim como agiu no controle do Marketing do Banestado no nascedouro do Plano Real.

Os passos dados por Campana, fui descobrindo com o tempo e a longa convivência com o amigo, tinham por epicentro, a figura de Ignácio de Loyola, o fundador dos Jesuítas, uma mistura de soldado e santo. A admiração pela disciplina jesuítica era enorme. Certa ocasião, chegou-me a citar encontros com um jesuíta que era bispo castrense (bispo para atender aos militares) do Paraguai. Por horas, poderia falar das reduções guaranis no Paraguai e Brasil. E do Império dito “Comunista” que os filhos de Ignácio montaram naquele país.

Inteligente como só ele, num dia de bom humor, quando não se queixava de dores provocadas por artrose, ele saiu-se com essa: – Só não consigo entender a ordem de obediência dos jesuítas, que deveriam ‘obedecer como um cadáver’. E cadáver obedece? Junto com o respeito a Ignácio de Loyola e sua Companhia de Jesus, Campana guardava um uma saudade enorme da missa tridentina, aquela do “introibo ad altare Dei”.

Gostava do ritual, do Mistério, do toque de profundidade das celebrações a que assistira quando criança com sua mãe, dona Irene, uma fortaleza nos seus 97 anos, em Foz do Iguaçu. Gostava do litúrgico, o teatro do sagrado. Campana merece um livro que mostre a vida e obra de alguém que, sendo jornalista, teve mais poder no estado do que se pode explicar. Acho que a capacidade de trabalho polimórfica de Campana justifica o fato de ele ter amealhado tanta influência na sociedade paranaense.

Isso, sem embargo de reconhecer, ao mesmo tempo, que, se foi muito respeitado por muitos, teve uma multidão de opositores. Alguns, verdadeiros inimigos declarados, declaração de guerra que nunca o abalou nem o obrigou a ter segurança pessoal. Inteligente, armazenava informações guardadas nas profundezas sobre seus inimigos. Uma vez, por exemplo, eu o ouvi perguntar a um advogado: – Qual é mesmo o nome daquele engenheiro de obras públicas que construiu a carreira bilionária de alguns empreiteiros..?

O EDITOR

Quando fundou a revista Ideias, Fábio convidou-me para fazer parte do Conselho Editorial, em que fiquei até à parada da publicação, tanto impressa quanto eletrônica, este ano. Santo ou “demônio” a ser exorcizado? – perguntam-me amigos sobre Campana.

Eu respondo com a certeza de que convivi e fui amigo próximo de um tipo altruísta, capaz de se endividar, vender patrimônio (como fez com uma bela mansão no Alto da Rua XV), gastar os melhores dias de sua mocidade em torno de projetos que ajudaram a saciar a fome cultural de milhares de paranaense.

Isso se deu em duas linhas de ação de Campana: a Travessa dos Editores, em que alocou recursos a fundo perdido (isso mesmo), publicando revistas e livros que têm lugar consolidado no inventário da intelligentsia paranaense.

Nunca ganhou dinheiro, nem com a revista Ideias, nem com os livros, alguns deles preciosidades que amigos como Márcio Renato dos Santos ajudaram a editar. Na minha opinião, a maior obra de Campana na esfera cultural foi a revista ETC, de curta duração, não mais de dois anos, no final dos 1990.

A revista, uma aula de bom gosto gráfico, era um Oferenda à inteligência, com contos, reportagens, críticas, em que artes plásticas e cinema submetiam-se ao escrutínio de colaboradores especializados, gente de vanguarda. Na editora Rubens, hoje diplomata servindo em Israel, atuou como editor, muitas vezes ao lado da escritora e poeta de enorme potência, a Isabel, dois frutos que caíram pertos da árvore (Denise-Campana).

Poderia passar horas escrevendo sobre Fábio Campana. Teria de falar do homem que passou pelas masmorras do Cenimar, na Ditadura, pelo menos duas vezes. Prefiro parar aqui.

Sem deixar de observar que o vídeo que acompanha este texto o Fábio Campana gravou a pedido de minha filha do coração (sobrinha e afilhada), Marcelle de Cerjat Duarte. É uma mensagem que ele fez questão (o trabalho já estava finalizado) de gravar. Foi pelos meus 80 anos, em julho de 2020. Esse testemunhal é encontrável no youtube, contendo mensagens de uma centena de amigos.

Tocador de vídeo

Esse milagre tecnológico, o vídeo, nos garante um momento de reencontro com Campana, uma raridade paranaense, uma espécie de “escrivão da frota” do século 20 e dos 20 anos deste imprevisível século marcado pela peste da Covid. Perdemos, enfim, aquele que poderia ainda nos oferecer amplos exercícios de inteligência nestes “dies irae”. Dias em que a vacina, como aquela que vacinou Fábio (e eu também) não foi eficiente para barrar-lhe o coronavírus. Tempos estranhos, em que imunizantes não mais imunizam…

 

Aroldo Murá é jornalista e professor