Chile chega ao dia da eleição mergulhado em incertezas com briga acirrada entre Kast e Boric

Os chilenos vão às urnas neste domingo (19) com a sensação de que tudo pode acontecer.A última pesquisa oficial d..

Os chilenos vão às urnas neste domingo (19) com a sensação de que tudo pode acontecer.

A última pesquisa oficial divulgada por um instituto respeitado, o Cadem, mostrava o esquerdista Gabriel Boric liderando a corrida presidencial com cinco pontos percentuais de vantagem –40% das intenções de voto, contra 35% do ultradireitista José Antonio Kast. E mais: 25% se diziam indecisos.

Na última semana da disputa é proibido divulgar sondagens, embora os partidos sigam encomendando levantamentos a empresas especializadas. Algumas delas vazam via redes sociais, especialmente por WhatsApp, plataforma na qual também se disseminam números pouco confiáveis, sem fontes claras.

O resultado é ruído e confusão entre apoiadores. “Vi que estamos virando e já estamos à frente por 3 pontos”, disse Sol Balvanera, 32, que esteve no encerramento de campanha de Kast.

Ao ser questionada de onde tirou o número, a apoiadora do candidato ultradireitista não soube responder. “Será uma lavada”, afirmou o comerciante Miguel del Román, 42, eleitor de Boric, dizendo que havia recebido de um colega de trabalho uma pesquisa que dava 7 pontos de vantagem ao esquerdista.

Se, no passado, as pesquisas já erravam muito no Chile, agora, com a desinformação turbinada por meio de redes sociais, a confusão sobre o que pode ocorrer é ainda maior.

O mais recente levantamento do Cadem mostra que Boric cresceu mais do que Kast, absorvendo parte importante dos votos que, no primeiro turno, foram para a centro-esquerdista Yasna Provoste e para o direitista liberal Franco Parisi. Já Kast, segundo a mesma sondagem, aumentou seu apoio principalmente com a adesão de eleitores de Sebastián Sichel, candidato governista e da direita tradicional.

O que aumenta o clima de incerteza é o fantasma da abstenção. O voto no Chile não é obrigatório, e o país vem de uma sequência de eleições com nível muito baixo de comparecimento. No primeiro turno, apenas 47% dos eleitores foi às urnas, com Kast obtendo 27,9% dos votos, contra 25,8% de Boric.

“Ambos os candidatos se esforçaram para convencer as pessoas a votar, mas o que mais deve contar são os votos convertidos, ou seja, os que foram para outros candidatos no primeiro turno e agora irão para um dos dois. É difícil que o universo de eleitores aumente muito mais”, diz o analista Cristóbal Bellolio.

Nas últimas semanas, Boric teve de pedir desculpas pelas críticas que fez no passado a políticos da Concertação, aliança de centro-esquerda que governou o Chile por 20 anos após o fim da ditadura (1973-1990). Em uma carta, afirmou: “Sei que a arrogância juvenil é uma má conselheira, que não existe virtude em apenas ser jovem e novo e que um projeto político deve ser julgado por suas convicções e princípios”.

O arrependimento, aparentemente, foi aceito. Boric recebeu o apoio dos ex-presidentes Ricardo Lagos (2000-2006) e Michelle Bachelet (2006-2010 e 2014-2018). Também se declararam a favor de sua candidatura a Democracia Cristã, que, no Chile, integra a centro-esquerda, e os socialistas.

Já Kast recebeu o apoio de formações da aliança governista Chile Vamos, entre as quais a tradicional União Democrática Independente, os moderados da Renovação Nacional e o Evópoli, de direita liberal.

Sichel, que obteve 12,7% dos votos no primeiro turno, vendeu caro o apoio, condicionando-o a uma lista de requisitos, como o respeito aos direitos humanos e a desistência de duas promessas de campanha. Uma delas, a de tentar revogar a lei do aborto que permite a interrupção da gravidez em casos de estupro, inviabilidade do feto e risco de morte da mãe. Outra, a de eliminar o

Ministério da Mulher. Kast cedeu e ainda chamou mulheres de renome, como a subsecretária de Saúde Paula Daza e a ex-candidata à Presidência Evelyn Matthei, para integrar sua equipe, antes composta quase exclusivamente por homens.

Aos 35 anos, Boric surgiu na política chilena nos protestos estudantis de 2011. Nascido em Punta Arenas, na Patagônia chilena, é formado em direito e foi eleito duas vezes deputado. Defende uma reforma no sistema de previdência, dando mais espaço ao Estado nas áreas de saúde e educação. Também é a favor da gratuidade da educação pública superior.

Defende a legalização do aborto e do cultivo da maconha, embora não seja favorável a uma política de legalização mais ampla das drogas. Lutou pela aprovação do matrimônio igualitário, recentemente transformado em lei no país, e é a favor de um Estado maior e mais participativo. Para aumentar a arrecadação, quer implementar um imposto a grandes fortunas.

Aos 55 anos, Kast é um velho conhecido da direita chilena, tendo atuado como parlamentar por 16 anos, representando a União Democrática Independente. Em 2017, foi candidato a presidente, conquistando 8% dos votos. De lá para cá, intensificou o discurso anticomunismo e contrário à imigração ilegal.

Sua plataforma é conservadora nos costumes, e ele defende uma política de segurança mais dura e a militarização do sul do país, onde grupos de defesa dos direitos dos indígenas mapuche estão em confronto contínuo com proprietários de terras. A base de apoio do ultradireitista é integrada por eleitores que se dizem cansados de tanta instabilidade social. Por isso, Kast promete estabilidade econômica e maior contenção de protestos, intensos no país desde 2019.

Kast se diz um admirador do ditador Augusto Pinochet e votou pela continuidade do regime militar no plebiscito de 1988. Filho de imigrantes alemães, um de seus irmãos foi ministro durante o regime militar.

Seu pai foi oficial do Exército alemão e apoiador do nazismo. Kast, porém, alega que o pai apenas serviu às Forças Armadas, mas que não compartilhava o ideário nazista. Documento obtido pela agência de notícias Associated Press, no entanto, contraria essa versão. Registro no Arquivo Federal alemão mostra que Michael Kast filiou-se ao Partido Nazista em 1942, aos 18 anos. Embora o alistamento militar fosse compulsório, como sustenta o filho, a filiação partidária era voluntária.

Assim, fica claro que Kast e Boric são candidatos de perfis muito distantes, e o Chile, em efervescência desde 2019, quando explodiram protestos por todo o país, vai escolher entre propostas polarizadas. Numa disputa acirrada, sem números confiáveis na última semana de corrida presidencial, alto número de indecisos e a expectativa de, mais uma vez, baixo comparecimento, tudo pode acontecer.