Pedro Ribeiro
Foto: Divulgação

André Tiago Pasternak Glitz

Uma instituição como o Ministério Público brasileiro é essencial na garantia desses direitos

 

No próximo dia 11, Vitória França da Silva completará 23 anos. Motivo de celebração, mas a data também marca um triste acontecimento que alterou a vida dessa jovem desde seu nascimento. Se não bastasse ser mulher, negra e viver em condições de pobreza num país em que a desigualdade e o preconceito ainda são gritantes, a história de vida da jovem retrata a timidez do tratamento e atenção para com os direitos humanos das vítimas de crimes no Brasil.  

Vitória nasceu em 1998, de um parto prematuro, na cidade de Santo Antônio de Jesus, a 187 km de Salvador, na Bahia, logo após a explosão de uma fábrica clandestina de fogos de artifício em que a maioria dos trabalhadores eram mulheres e crianças.  A mãe de Vitória, Rosângela de Jesus França, 35 anos, era uma dessas trabalhadoras que, como a maior parte dos pouco mais de 100 mil habitantes do município, sobrevivia da produção de fogos de artifício.  Rosângela faleceu em consequência da explosão, assim como outras 63 pessoas: 59 delas eram mulheres, 19 ainda meninas. Rosângela não era a única grávida, havia mais quatro entre as vítimas, em sua grande maioria negras e pobres.

 

A tragédia deixou apenas seis sobreviventes, três mulheres adultas, uma menina e dois meninos. Nenhum deles recebeu tratamento médico adequado para se recuperar das consequências do acidente. Desde então, o município se tornou conhecido como o palco do maior acidente de trabalho com fogos de artifício da história do país. Vitória França da Silva, a filha de Rosângela, sobreviveu, mas cresceu sem mãe e apresentou, desde criança, problemas físicos (ataques epiléticos) e psicológicos, consequências diretas da explosão da fábrica que comprometeram seu desenvolvimento e aprendizado.    

A condenação dos donos da fábrica ainda não transitou em julgado. Os familiares das vítimas criaram o movimento 11 de Dezembro, com o intuito de chamar a atenção das autoridades para o caso e buscar por justiça. O caso e seus desdobramentos voltaram a ser notícia, agora de repercussão internacional, com a recente condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). A disposição da sentença condenatória da CIDH é paradigmática do tratamento que as vítimas de crime, notadamente em condições econômicas e sociais de vulnerabilidade, recebem no país: “o Estado brasileiro  violou os direitos à vida e à integridade pessoal das supostas vítimas e de seus familiares, uma vez que não cumpriu suas obrigações de inspeção e fiscalização, conforme a legislação interna e o Direito Internacional;  os direitos da criança;  o direito ao trabalho, pois sabia que na fábrica vinham sendo cometidas graves irregularidades que implicavam alto risco e iminente perigo para a vida e a integridade pessoal dos trabalhadores; o princípio de igualdade e não discriminação, pois a fabricação de fogos de artifício era, no momento dos fatos, a principal e, inclusive, a única opção de trabalho dos habitantes do município, os quais, dada sua situação de pobreza, não tinham outra alternativa senão aceitar um trabalho de alto risco, com baixa remuneração e sem medidas de segurança adequadas; e os direitos às garantias judiciais e à proteção judicial, pois nos processos civis, penais e trabalhistas conduzidos no caso, o Estado não garantiu o acesso à justiça, a determinação da verdade dos fatos, a investigação e punição dos responsáveis, nem a reparação das consequências das violações de direitos humanos ocorridas”.  

O Brasil foi condenado em 2020. Trata-se da décima condenação do país em que o pano de fundo é o mesmo: o desrespeito dos direitos das vítimas de crimes e sua sistemática violação. Tragédias que ceifam vidas, destroem famílias e que não têm recebido do Estado brasileiro a atenção adequada, seja numa perspectiva preventiva – com a adoção de medidas que possam no futuro evitar casos similares -, seja no sentido de garantir às vítimas toda uma gama de direitos que ainda encontram barreiras no país.  

De fato: há um preconceito quanto ao tema no âmbito do sistema de justiça criminal brasileiro. Precisamos que a CIDH nos lembre que é um direito das vítimas e um dever do Estado uma investigação capaz de apurar os fatos, identificar os responsáveis e reparar os danos causados pelo crime. Lamentavelmente, nem mesmo mais uma condenação na Corte Interamericana é garantia de observância de algo básico como o cumprimento da condenação de reparação ocorrida há mais de um ano.  Em outubro, uma delegação do Governo Federal esteve na Bahia, realizando reuniões com beneficiários e seus representantes com a proposta de discutir planos de ação para as obrigações impostas ao Brasil e até agora nenhuma das medidas de reparação contempladas na sentença foi implantada.  

Uma sociedade democrática é fundamentada na garantia dos direitos humanos previstos na Constituição e nos tratados internacionais que o Brasil faz parte. Estamos tratando de desafios históricos e precisamos iniciar um movimento para que essa realidade mude em nosso país. Para que exista a igualdade perante a lei que garanta que não haverá fabricas clandestinas, nem mulheres trabalhando em situação de escravidão e nem trabalho infantil. Porém, se isto ocorrer, crianças como Vitória terão seus direitos garantidos pelo Estado. Uma instituição como o Ministério Público brasileiro é essencial na garantia desses direitos. Como guardião do Estado de Direito e do regime democrático, no cumprimento de suas missões constitucionais, o Ministério Público está defendendo valores, interesses e direitos de vítimas como Vitória. Há, ainda, muito a ser feito, como nos lembra a mais recente condenação do Brasil na CIDH, mas precisamos continuar caminhando em frente e não admitir retrocessos. Daí a importância de um MP forte e independente: para que os direitos humanos, dentre eles os direitos das vítimas, possam um dia merecer tratamento digno em nosso país. Para tanto, uma instituição como o Ministério Público, cuja missão é a defesa de tais direitos, e que possa fazê-lo com autonomia, é o caminho para que essa triste realidade seja alterada.  

 

André Tiago Pasternak Glitz,  

Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná e presidente da Associação Paranaense do Ministério Público (APMP)