Pedro Ribeiro
Foto: Divulgação

Por Aroldo Murá

Ouso contrariar uma das máximas do Evangelho  que diz –  “apenas o Pai é  bom”.  Pois René Ariel Dotti, que nesta quinta-feira, 11, nos deixou, tinha, além da bondade,  sinal de adesão à  doutrina que abraçava – o Kardecismo -, as marcas de  raro perseguidor da Justiça. Havia feito uma longa e fértil aliança com a Justiça e com o Direito, desde quando ‘encantou-se’ na Universidade Federal do Paraná, anos 1950s, por enunciados de grandes pregoeiros  que o mesmerizaram  em cátedras históricas da UFP.

Um espaço do qual, depois, seria também ocupado por ele, doutor das irrepetíveis aulas magnas e na construção de códigos do Direito brasileiro, em andanças mundo afora.Egas Moniz Aragão, de quem fora aluno e depois colega,  era um de suas constantes exemplos, marco na vida do jovem acadêmico. Na verdade, o panteão de mestres –  incluindo outros  nomes,  como Sansão José Loureiro também – era  constantemente reverenciado por Dotti, já quando o conheci, em  1960, nas redações da Revista Club (Dino Almeida) e Diário do Paraná (da cadeia Associada).

A sua  vivência como repórter e crítico de teatro em jornal, no DP, era um dos  orgulhos sempre  expostos por Dotti.  Essa realidade  ganhava revigoradas  lembranças quando René se reunia em 29 de Março, de cada ano, para celebrar, com antigos companheiros,  em  jantar em Santa Felicidade, o aniversário do Diário do Paraná – sua primeira e eficaz tribuna.

MOMENTOS

Nesses encontros do 29 de Março,  partilhava de experiências dos dias da calandra, composição tipográfica, chumbo da linotipo,  ‘picas’,  enfim, o  léxico de uma imprensa romântica  mas  eficaz, ao lado de  Eduardo Rocha Virmond, Carlos Danilo Costa Cortes, José Kalkbrenner, Bernardo Bittencourt, Luiz Geraldo Mazza, Aírton Luiz Baptista, Airton Ravaglio Cordeiro, Vinicius Coelho, Leo Kriger,  Mario Camargo Maranhão, Miecislau Surek, Carneiro Neto, Jorge Edil Boamorte… grupo de pioneiros. E ao qual se juntavam outros, mais jovens, como Creso Moraes, Allmir Feijó Junior, Eloah Lhôr, João José Werzbitski, Walter Schmidt.

A fidelidade aos amigos e às causas abraçadas foram sempre inegociáveis no René que o Anjo da Morte levou neste dia 11, pegando-o justamente pelo coração que tanto definiu a vida do jurisconsulto que o Brasil  da Justiça e do Direito acabou  acatando por sua enorme sabedoria jurídica.

E pela inesgotável capacidade de produzir doutrina, fruto, acredito, do sólido patrimonial cultural lastreado em clássicos do conhecimento universal. Como esquecer o gentil– homem que nele existia, presente, constante, sem jamais mostrar dificuldades de saúde que ultimamente o tinham levado por vezes a São Paulo? Nos natais, me presenteava com livros, invariavelmente.

Minha afilhada e sobrinha, Marcelle de Cerjat Duarte, ao saber da morte de Dotti, comove-se: “Ele mandou um vídeo tão iluminado pelos seus 80 anos… quanta sabedoria nas palavras dele…”

NO AZULAY 

Recém saído da Universidade Federal do Paraná, o advogado René Dotti, lá pelos 1956 – se não me engano – foi ocupar uma salinha no Edifício Azulay, Rua Dr.Muricy, esquina de Rua XV. Era o que se tinha na época, talvez o edifício Asa fosse pouco mais bem equipado, ou o Tijucas? Lá ele se estabeleceu num território  de amplos corredores, onde encontraria  dois outros causídicos que com ele cresceriam no acatamento do mundo jurídico –  Augusto Prolik e Élio Narezi.

Os três, que   depois se tornariam exemplares consumados do patriciado curitibano, dividiam, como outros inquilinos, o acanhado banheiro do fim do corredor. Às vezes, havia fila na porta dos WCs.

Filho de um pintor de paredes (“ele fazia  também pintura artística, como rosáceas, arabescos” – explicou-me um dia), e de uma modista, René fez-se gente no bairro do Ahu. Casa modesta, mesa farta como convém a espaços ainda  italianos. Dalí foi descobrindo o mundo, depois da passagem pelo grupo escolar. O marco mais importante de sua mocidade, acredito – e ele me falou muito dele no  meu livro Vozes do Paraná, do qual foi personagem -,  foi o Colégio Estadual do Paraná (CEP). O CEP do “kaiser” professor José Ribeiro, com sua voz imponente a apartar a briga, via altofalantes, das gurizada inquieta.

Naquele Colégio  Estadual do Paraná, um ateneu irrepetível, foi dividindo espaço com alguns outros ginasianos dos mesmos dias, gente que encontrava nas mesmas salas de aula, ou pelos corredores: Jaime Lerner,  Segismundo Morgenstern, Ary Fontoura,  Tato Taborda,  Luiz Geraldo Mazza,  Norton Macedo, Dino Almeida, José Carlos Gomes de Carvalho (Carvalinho)…

E os mestres? O francês que falava e escrevia com desenvoltura, costumava  dizer, devia-o  à vocação de dois professores inigualáveis – Vítola e Maria das Dores Wouk, assim como o Latim essencial a João Mazzarotto, e os  cuidado com o Português  a Miguel Wouk e Leopoldo Scherner.

“Que colégio estadual  pode repetir hoje em dia essa seleção de notáveis?” – costumava  perguntar Dotti, acrescentando “de rebote: “Mais Germano Paciornik e Cecília Westphalen”, entre os que o formaram no CEP, catedráticos também da UFP.

MUNDO DO TEATRO

Quando entrou na Curso de Direito, o coração de Dotti estava balançado por outro amor – o teatro, iniciado que fora na arte teatral no Colégio Estadual do Paraná.

Foi fazendo teatro nos dias do CEP, e depois,  encenou peças de alta qualidade, pelo Teatro do SESI,  como “Seu Nome era Joana”, de Eddy Franciosi. Lala Schneider, Ary Fontoura, Odelair Rodrigues, Franciosi – os companheiros de jornada e palcos, poucos anos depois passariam a ser seus personagens nas crônicas teatrais diárias que escreveria para o Diário do Paraná.

Não me equivoco: isso mesmo, crônicas teatrais diárias. Isto  numa  “provinciana Curitiba”!

A tendência é me alongar, enquanto vou compondo ,de memória, este texto. Muito especialmente porque me emociono  com os calorosos  cumprimentos que me mandou Dotti em recente janeiro, pelo texto que escrevi neste espaço pela  morte de Norbert Castilho.

Do advogado posso observar  de forma particular a luta que travou, qual leão indomado, em tempos de regime arbitrário, o de 1964, quando todos temíamos pelas truculências do regime.

Ele foi a todas as instâncias da Justiça Militar – a começar pela de Curitiba, digladiando-se  com Felipe Rauen -, terminando no Superior Tribunal Militar, em defesa de dezenas de jornalistas que haviam sido denunciados por suposta infração à Lei da Segurança Nacional.

Alguns dos beneficiados pelo trabalho hercúleo do indomável Dotti estão aí, como Adherbal Fortes de Sá Junior, Luiz Geraldo Mazza.

Foram “tempus horribilis” mas que jamais intimidaram o advogado que, sei, muitas vezes teve de pagar do bolso despesas para consumar seu trabalho por fim vitorioso. A Justiça Militar concordou, não houve crime dos jornalistas.

Dotti nunca fugia de causas em que pressentisse “fumaça de boa justiça”. Assim, por exemplo,  vinha defendendo um conhecido mediu  de Curitiba, cidadão que reúne em seu centro parte da elite curitibana. Pois esse religioso – para muitos, um iluminado – Dotti estava mostrando ser ele “apenas” vítima de perseguições e invejas no mundo do kardecismo. Obra e desgraça montadas por ex-companheiros que viam no antigo mestre um consumado pedófilo e, também, molestador de homens jovens durante sessões espirituais.

O PÈRE LACHAISE 

Dotti, nas muitas mensagens que me mandou nos últimos anos, referia-se com freqüência ao Cemitério Père LaChaise, de Paris, um território sagrado  que ele, com a esposa, muitas vezes visitou. Gostava de ler os epitáfios. Memorizava-os e frequentemente os citava, em suas mensagens. Foi numa dessas  idas ao Père La Chaise que ele visitou o tumulo de Alan Kardec, e de lá colheu uma expressão que acabou sendo o ponto de partida para a defesa de uma de suas batalhas jurídicas emblemáticas. No epitáfio, o  pai do kardecismo (portanto, a mais bem acabada versão ocidental de postulados reencarnacionistas),  é apresentado como “pai da filosofia Espírita”.

Para contextualizar: Dotti, espírita convicto, tinha, na defesa de monsenhor Jonas Abib, fundador do Movimento católico Canção Nova (um dos chamados Novos Movimentos), de provar que as manifestações do sacerdote pelas quais estava sendo processados por umbandistas, não procedia. Jonas não teria afetado, defendeu Dotti,  a uma religião, ao condenar publicamente a umbanda um tipo de desgraça… Ofendera, quando muito, a uma filosofia, o reencarnacionismo.

Ponto para Dotti, batalha encerrada a favor de Jonas Abib.

Para  finalizar,  me obrigo a registrar o raro orador que encontrei em Dotti, ao longo de muitos anos. Ele era a matéria prima essencial dos tradicionais jantares do 13 de Dezembro, o da entrega de títulos de comendador  da Boca Maldita.

Não perdia momento para expor  o orador de imensos recursos que nele existia, comovedor  de platéias e  tribunais, cheio de lógica e, muitas vezes, de bom humor. Encarnava, no discurso,  como poucos, em certos momentos, o “ridendo castigat mores”. Nessa especialidade era, ao lado de Mazza e Francisco das Cunha Pereira Filho, o grande ponto de referência da Boca, o melhor palco e platéia de Curitiba.

POR QUEM DOBRAM?        

Os sinos dobram por Dotti, como um dia ele me lembrou, citando a importância dos sons metálicos na memória do homem ocidental. Recorreu a   Horácio (se não me engano):  – “Laudo  Deum, populum voco,  congrego clero, defuntum ploro, pestem fugo”. São as qualidades do sino, reverenciou o jurista.

.Dotti fugiu da peste ( “fugo pestem”), a Covid, bom driblador do destino que ele  era.

Mas  foi dominado pelo coração em seu embate final com o Anjo da Morte, para tristeza de Rosarita, e das filhas, e do universo de amigos que soube cultivar, em todas as latitudes   políticas, à esquerda, ao centro, à direita. Tudo de acordo com sua dimensão de ser humano a quem  em 2018 entreguei o diploma de “Grandes Personagens do Paraná”, concedido pelo Instituto |Ciência e Fé Fidelis et Constans, de Curitiba.

Parafraseando Bandeira, acho que Dotti entrou nos planos superiores sem pedir licença ao Senhor. “Você não precisar pedir licença”, teria  avisado o Anjo.

 

Aroldo Murá é jornanista